(ZH, 05/09/2008, pg. 26)
Ninguém deixa de se perguntar o que é ser feliz. Ao fazê-lo, não pode deixar de indagar a respeito do que é gozar a vida. Quem sabe gozar a vida? A pergunta se impõe, uma vez que não é certo que todos o saibam, ao mesmo tempo em que é certo que todos gozam na vida, cada um à sua maneira. Cada um goza como pode. O gozo encontra seu limite, por um lado, na capacidade física e psíquica de gozar e, por outro, nos regramentos sociais a respeito do prazer. A cultura fala do ponto além do qual não posso ir. Fala do gozo perverso, aquele que não reconhece no outro um sujeito e, por isso, toma-o como simples objeto de gozo.
Não podemos abrir um jornal, uma revista ou ligar a televisão sem depararmos com o gozo a rédeas soltas: epidemia de crack, homicídio endêmico, crimes hediondos, desvio do dinheiro público para enriquecimento pessoal, pedofilia na internet e demais coisas congêneres compõem o nosso sobressaltado cotidiano. O que está acontecendo conosco? Nossa sociedade perdeu a capacidade de levar seus membros a trocar o gozo perverso pelos prazeres da vida em comunidade. A psicanálise, com Freud e Lacan, localiza o gozo num além do princípio do prazer, onde o princípio de realidade não tem vigência. Da mesma maneira, lá também a lei não tem vigência. Será possível pensar em felicidade onde a lei e o princípio de realidade não têm vigência? Onde o outro deixa de ser percebido como sujeito, aparecendo apenas como objeto de gozo? Nossa sociedade perdeu grande parte da sua capacidade de seduzir seus membros a renunciar ao gozo em favor da aceitação dos limites propostos no contrato social.
Conseguiremos reaprender a fazer isso? Nossa situação é paradoxal: se, por um lado, podemos facilmente identificar nossa cultura como a cultura da felicidade, na medida em que estimula a busca da felicidade a qualquer preço, por outro lado, é certo que produzimos também um grande mal-estar na cultura. Portanto, temos muito que pensar. É claro, dirão, temos muito que fazer. Porém, a ação que prescinde do pensamento e do planejamento prévio corre o risco de padecer do mal que quer curar: o do gozo da ação em si, sem contemplação da complexa realidade em que esta se insere. Temos muito que pensar. Não sendo assim, não seremos capazes de construir um sonho de felicidade que possa, mais que ser apenas sonhado, vir a ser, de fato, construído como realidade social.