25 de julho de 2011

“O bagulho é doido mermão!”

“ ...  já vou ficar no lucro se passar dos dezoito,
depois que escurece o bagulho é doido. O mesmo dinheiro
Que salva também mata...”
( O bagulho é doido -  MV Bill)


Desenvolver o Eixo III do Programa RS Sócioeducativo do Governo Estadual, que consiste em uma casa de internação de adolescentes em conflito com a lei, em regime de semiliberdade, é muito inquietante e desafiador; abre dúvidas e angústias que nos levam a refletir: que questões se passaram com este adolescente ou  que escolhas fez para chegar onde está? Foi possibilidade de escolha ou falta desta? Implicados nisto estão apenas o adolescente e seus familiares ou também: o adulto receptador de produtos furtados, a professora da creche que não suportou a tal “hiperatividade” do aluno e o retirava constantemente da sala, os técnicos que atendiam crianças em secretarias de saúde e assistência social, os familiares que aceitavam “presentes” sem saber de onde vinham? Ou os “playboys” que pelo seu vício sustentam os “vendedores” e quem sabe “demais violências”?
                        Ao ouvir os adolescentes e seus familiares, deflagram-se diversas formas de carências, além das materiais, muitas de ordem psíquica, onde fica explicito em fragmentos de relatos como quando uma mãe nos diz: “eu fico mais calma quando ele tá lá” (se referindo a internação), nos apontando que por algum motivo lhe escapa a possibilidade de contenção deste filho, lhe escapa sua função de proteger  e dar limites a “cria”. Ao que percebemos, construiram maneiras  de sobreviver, de poder suportar o dia a dia, que se apresenta cheia de fragilidades, limitações, frustrações e de perdas. E, sem perceberem buscam ativamente estas perdas em cada tragada na “pedra”  ou envolvimento com amigos que são “apagados” na noite.
            Tendo a psicanálise como escolha pessoal de suporte teórico e sabendo que seu objetivo é de uma escuta desprovida de julgamentos e de nunca ir a frente mas sim, caminhando ao lado ou atrás do sujeito, penso que é necessário não só levantar questionamentos sobre este (adolescente)  e suas formas de viver, como é preciso uma psicanálise que  faça uma leitura do mundo externo, do de fora, do mundo da cultura, conhecida em Freud como “psicanálise aplicada” ou como“psicanálise extra muros” por Laplanche, sendo aquela que se propõe como uma ciência para pensar os fenômenos sociais e trabalhar com a vida humana onde ela se apresente. Até porque a adolescência é uma transição entre o laço familiar e o laço social.
            Assim, é oportuno uma crítica quanto ao nosso discurso social, que ecoa nas ruas, dizendo que são  drogados, sociopatas, e uma infinidade de rótulos, diagnósticos e olhares que os colocam num lugar marginal, no lugar de alguém que deve ser trancafiado, excluído do convívio com os demais, “criaturas” sem possibilidades de transformação. Não seria isto uma forma simples de tirarmos nossa responsabilidade enquanto cidadãos, adultos, modelos de identificação? Então o que é “bom” está em mim, o que é “mau” está no outro? Não seríamos nós, os atravessados pela Lei que repassamos valores aos sujeitos em constituição (crianças e adolescentes) para que possam viver em sociedade? Que valores são estes? De que o que vale é o “que se tem” e não “quem se tem”? O peso do ato de um jovem da periferia, privado de recursos econômicos e psíquicos, pesa mais na justa balança de nossa moral do que o roubo à população feita pelos políticos com graduação superior, ou dos filhos de diplomados que colocam fogo em índios,ou machucam negros, mendigos ou homossexuais? De onde vem esta violência, dos que devem estar “internos” em restrição de liberdade ou dos ditos cidadãos respeitados que circulam por aí? Como diria o rapper MV Bill: “teu pai te dá dinheiro/ você vem e investe/ no futuro da nação/ compra pó na minha mão/ depois me xinga na televisão/ na sequência vai pra passeata levantar cartaz/ chorando e com as mãos sinalizando o símbolo da paz...o rico me odeia e financia minha munição...a droga que você usa é batizada com sangue/ é mais financiamento/mais armas/bang-bang”
            No tocante ao trabalho no CASEMI (Centro de Atendimento Socioeducatvo em Semiliberdade), penso que este deve estar atravessado de uma escuta clínica implicada na proposta de oferecer aos adolescentes um lugar de sujeito olhado, escutado. Buscando no trabalho com estes, os significados inconscientes das suas “caminhadas”. Levantando interrogantes para que possam “se pensar”, produzindo um efeito em suas atitudes e suas escolhas futuras. A intervenção analítica deve buscar nesta relação a dois criar uma nova condição nestes sujeitos, como também, uma possibilidade de que possam denunciar os abusos que pensam ter sofrido (ou realmente tenham sofrido!), de uma sociedade onde o narcotráfico oferta mais vagas de emprego do que o Segundo Setor da economia do país; onde, quem sabe, o “pai” traficante não possibilita só um prato de comida para o autoconservativo como também a possibilidade de um olhar que lhes faltou, que lhes reconhecesse enquanto sujeito, trazendo “amparo”, “reconhecimento”, “pertencimento”? Nesse sentido é oportuno resgatar um pensamento do psicanalista Jacques Lacan: “que o sujeito só passa a existir a partir do olhar de reconhecimento do Outro”.  Portanto, que possamos com este trabalho, reconhecê-los como sujeitos de existência psíquica, responsáveis pela sua história e com sua vida.
            Enfim, para quem pensa que apenas a punição ou a restrição (internação) é a solução desta conflitiva, vem MV Bill em sua canção “O bagulho é doido” respondendo: “...se eu morrer nasce outro que nem eu, ou pior, ou melhor...”, assinala uma sentença, um destino, que acreditamos que para ser mudado devemos como sociedade pensar em estratégias de prevenção, de um olhar de constituição a nossas crianças e adolescentes como forma de poderem ter recursos internos em postergar o prazer e suportar as castrações da vida, isto é fazer surgir ligações afetivas continentes associada a garantias de direito sociais. Só assim, através do abastecimento da vida que teremos a abstenção das drogas e demais aderências da ordem da morte, tanto dos “playboys” quanto dos “manos”.

Pedro A. Pouzada Mandelli
Psicólogo do Centro de Atendimento Socioeducativo em Semiliberdade
CASEMI - Passo Fundo/RS

3 comentários:

Anônimo disse...

Concordo plenamente com o Dr. Pedro Mandelli. Muito lúcida e inteligente a abordagem dele nessa questão sobre as drogas/adolescentes/usuários burgueses. Parabéns pelo artigo!

Anônimo disse...

muito legal este texto, faz a gente pensar num monte de coisas da questão dos adolescentes em conflito com a lei. Parabéns!

Anônimo disse...

Querido Pedro, colega de tantas discussões, este texto esta digno da tua pessoa, brilhante como você...abço da sempre colega angelica