4 de julho de 2014

Testemunho e Repercussões sobre a peça "Para SEMPRE Poesia" de Rita Maurício

* Luís Borges escreve: Poesia eternamente


A peça Para sempre: poesia!, infelizmente, teve curta temporada (de 28 de maio a 1º de junho) em Pelotas.  O monólogo foi escrito e encenado por Rita de Cássia Maurício. O espetáculo causou tal impacto em mim que, mesmo decorridos alguns dias, estas palavras ainda me são custosas. O primeiro motivo é de ordem pessoal – estou emocionalmente ligado aos personagens que inspiraram a obra teatral –somando-se o fato, ainda que de outra maneira, de ela também retratar muitos aspectos da minha história familiar. A partir dessa condição, com as emoções remexidas, estou impedido, em certo grau, de emitir uma opinião estética serena a respeito da peça. Além disso, apesar de já ter escrito crítica teatral, este está longe de ser o meu metier. Hei de confessar o seguinte: tal como ocorria com o teatro grego antigo, Para sempre: poesia! cumpriu, para mim, uma função catártica.

Todos nós, diretamente violentados pela Ditadura Militar (filhos, esposas, parentes, amigos), trazemos as marcas indeléveis daqueles tempos sombrios. Tempos que nos congelaram no medo, na amargura, na dor. Os membros do regime, seus delatores assalariados e covardes gratuitos, nos assombraram por muito tempo. Eu só falava nisso no âmbito da análise histórica e da reflexão política. Nunca tive coragem de compartilhar os sentimentos. Talvez isso se devesse à culpa. De um lado, estava aquele homem que lutou contra a tirania e, de outro, o que nos abandonara. Como ser tão egoísta a ponto de exigir a presença do pai, quando a Nação precisava do militante? Eu não tive a coragem de Rita. Nem a teria, porque não sou mulher. Aos homens não é ensinada a coragem, só a bravura. O adjetivo bravo é acompanhado de grandes gestos e de retórica grandiloquente. O substantivo bravura é feito para as estátuas, mas a coragem para a dinâmica da vida, expressa nos pombos que cagam nas estátuas. A bravura é barulhenta e falaz, mas a coragem é pudica, fala baixo e possui gestos contidos. A bravura exige o sangue alheio, a coragem, o próprio sangue.Quiseram o sangue de Cristo e Ele lho deu para nos redimir.

Sou grato a Rita Maurício por ter me ajudado a dar um enterro digno a meu pai e ter permitido que eu saísse daquele velório interminável. Velório das minhas lembranças e das minhas culpas. Hoje, posso sair do cemitério, chorar e viver o luto. A despeito dos olhos desabituados pela escuridão, posso já vislumbrar o sol.Certa vez disse Flaubert: “Madame Bovary sou eu”! Também posso dizer: “Rita Maurício sou eu”!

Deve-se considerar que todos conhecem a trajetória política e pessoal dos personagens que inspiraram a peça. Os dois, o poeta e a artista plástica, cujas vidas em si mesmas são interessantíssimas, tornaram, ao mesmo tempo, mais fácil e mais difícil, realizar uma bela produção artística. Se o tema e as pessoas eram de sobejo, material fértil para a criação, sintetizar tudo e tratar de assunto tão delicado e doloroso, não era tarefa simples. Tarefa, contudo, que a atriz e dramaturga Rita Maurício se desincumbiu extraordinariamente bem. Deste modo, ficou fácil identificar-se com esses personagens tão humanamente retratados.
A biografia ficcional do grande poeta José Luiz Maurício é emblemática dos ideais de toda uma geração. Torturado pelos carrascos da Ditadura Militar, adoeceu, tendo de abandonar o curso de Medicina, passando desde então a intensificar-se seu sofrimento psíquico. Seli Maurício, tão conhecida (embora insuficientemente reconhecida) e estimada em nosso meio, é, além de grande artista plástica, pessoa de personalidade encantadora e singularíssima. No entanto, como muitos estão a par, sua fibra, seu caráter, sua fidelidade ao marido, colocou-a num patamar ético muito elevado. Poucas vidas privadas estão à altura de projetos histórico-políticos esbravejados em palanques. Admirar um grande artista, fruir da beleza e do desvanecimento de seus versos é uma coisa; outra é suportar cotidianamente as dificuldades inerentes ao cuidado de uma pessoa acometida de frequentes surtos psicóticos, consequência dos porões medonhos.
Há uma cena na peça em que a personagem Seli afirma: “Eu casei com a poesia dele”. Dessa afirmação depreendo algumas das questões mais interessantes que a obra suscita: qual é a linha tênue que separa o artista do marido? A arte do criador? Quais as fronteiras entre arte e vida? Os românticos faziam de suas vidas sua própria obra-prima. Essas interrogações não se restringem à forma como são mostradas as personagens Seli e Maurício, se estendem também à narradora. Onde termina a atriz/autora e começa a filha?

É muito difícil, nestes termos, elaborar uma obra ficcional baseada em personagens reais e tão fartamente conhecidos em nosso meio. Estamos todos de tal maneira  envolvidos, mesmo os que não os conhecem pessoalmente, mas que já tiveram contato com sua arte, que se torna quase impossível não idealizá-los, não mitifica-los, o que, certamente, é tudo que nunca desejaram. Enquanto os dois viverem (e nossos votos são de que estejam entre nós por muito tempo) talvez por sua importância artística, política e cultural, isto é, pela alta significação que possuem para a arte do sul do Brasil e pelas pessoas maravilhosas que são, a crítica, pelo menos, a honesta crítica pelotense e regional, terá de fazer um esforço hercúleo para emitir juízo puramente estético sobre a obra teatral. Tentando, mesmo palidamente, realizar esse esforço, algo que se pode dizer é que a peça Para sempre: Poesia! conseguiu tratar os personagens sem vitimização. São figuras inteiras, apaixonadas pela vida, com tudo que nela tem de alegre, grotesco, nobre, delicado, triste e frustrante. Enfim, é a existência desfilando em roupas de baixo.

Entre os muitos temas subsidiários está o questionamento sobre o papel do artista na sociedade capitalista e as grandezas e misérias da condição humana, independente de suas opções ideológicas.

A peça está tão bem construída artisticamente que quase nos engana. Aparentemente se mostra como uma biografia ficcional de Seli e Maurício. Ledo engodo, antes é uma autobiografia de Rita. Vemos a vida, o drama e as alegrias da trajetória dos dois grandes artistas pelos olhos da narradora/atriz. São suas dores, perplexidades, reclamos, carências e sua ambivalência em relação aos pais, que nos é revelada com um lirismo indizível. A grande armação do monólogo é que a narradora, tão em evidência pela própria natureza desse gênero teatral, fica em segundo plano e deixa os personagens falarem. A voz que a Ditatura quis silenciar lhes é devolvida a plenos pulmões. Outro grande mérito é que a peça consegue, mesmo tratando de um tema tão pesado, dosar o clima sufocante e doloroso com um fino humor. O riso alivia a tensão. O humor e a ironia são os instrumentos mais afiados da inteligência. A peça nos faz caminhar sobre espinhos forrados de veludo. É um ajuste de contas da autora consigo mesma e com a história de toda uma nação. As dores, as frustrações, os lances curiosos e engraçados dessas duas grandes vidas albergam dois polos cruciais da existência de todos nós: a insanidade e a resistência. Ambos, nesse caso, redimidos pela arte e pelo amor.     

Para evitar permanecer apenas no terreno valioso, mas incerto, da emoção, vale dizer, sem sombra de dúvida, que Para sempre: Poesia! se sustenta, sem favor, como obra artística de alto nível. A atriz, que eu não conhecia, é extremamente talentosa. Ela é completa: canta, dança, atua; tudo isso de modo seguro, gracioso e leve. Sua sensibilidade grita pelos poros e nos contagia. Diga-se de passagem, que a atuação de Rita revela um pleno domínio da técnica de sua arte. Na caracterização das personagens, por exemplo, não necessitou de grandes recursos de maquiagem ou figurino específico, vivificando-os por intermédio de jeitos, trejeitos, expressões e colocação de voz, definindo-os, em seus traços mais marcantes, com perfeição.

Outro elemento a destacar, é que a peça Para sempre: Poesia! passa a limpo, muito oportunamente, quando recordamos os 50 anos do Golpe Militar, de tão infausta memória, diversos aspectos daqueles tempos sombrios. Os que sobreviveram aos seus algozes tiveram que buscar formas de resistir ao pesadelo e continuar. A loucura é uma delas. A dissociação da mente é uma armadura para suportar o horror e a solidão. Alguns de nós a vestimos e depois ela se gruda em nossa pele. Foi talvez este o caso do grande poeta José Luiz Maurício. O sofrimento psíquico é um preço muito alto a ser pago por um ideal, mesmo o mais nobre. Mais difícil ainda terá sido para uma mulher enfrentar 30 anos de dores, fazendo da lucidez a sua doença. A lucidez é apenas um ponto de vista.

Como Seli e Maurício, eu me vi desnudo no palco. Só então pude perceber toda a amargura, toda a raiva surda, toda a claustrofóbica angústia que me aprisionou todos esses anos. Hoje, eu perdoei – sobretudo – me perdoei. Não estou dizendo que não se investigue e puna os tiranos e os torturadores. Mas que punição me pode devolver os olhos da infância? Que sentença poderia indenizar a mácula da alma? Depus a espada, mas não aposentei a bandeira. A antiga bandeira teve os seus dias, tremulou ao vento de nossas ingenuidades. Não desertamos da Causa porque nós somos a Causa. Porém, o contrário de injustiça não é justiça, mas amor. O reverso de miséria não é riqueza, mas partilha. Sigo tranquilo com meus passos curtos, meus olhos de rato, minha voz rouca e sumida. Caminho em paz porque se os assassinos sujeitos aos podres poderes escaparem aos tribunais, não escaparão ao julgamento da história; se eles vencerem para contar a história, não terão como se esconder do Juízo de Deus. Percorro os dias de mãos dadas com meus companheiros, como diz o célebre verso de Drummond; quero também que nossos filhos se deem as mãos; digamos a eles que aqueles dias macabros, em que “o pão era pouco e a liberdade pequena”, são apenas uma notícia longínqua de tempos que não voltarão. Podemos até ser órfãos da utopia, como já afirmou alguém. Todavia, esqueceu-se de dizer que somos também filhos da esperança, enquanto que eles, só uns filhos...

* Poeta, crítico literário e tradutor. Mora em Pelotas.

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