O Brasil no
divã
O médico e
psicanalista Moisés Rodrigues da Silva Júnior coordena uma das Clínicas do
Testemunho,o programa criado pelo Ministério da Justiça para atender vítimas da
violência do regime militar: “O brasileiro se acostumou à convivência com a
tortura”
Luiza
Vilaméa | fotos: Luiza Sigulem
Perspectiva - O psicanalista, sobre o
programa de reparação do estado brasileiro: “o testemunho é parte fundamental
do processo de restauração da verdade”
A entrevista durou o tempo de uma
hora clássica de psicanálise: 50 minutos. O tema da sessão de perguntas e
respostas,em contrapartida, girou em torno de uma iniciativa inusitada:as
Clínicas do Testemunho, um serviço de saúde mental dirigido a atingidos pela
violência do Estado durante a ditadura militar. À frente de uma dessas clínicas
e de uma equipe de sete profissionais do Instituto Projetos Terapêuticos de São
Paulo, o médico e psicanalista Moisés Rodrigues da Silva Júnior afirma que a
violência do regime deixou marcas profundas e múltiplas. “A vítima da tortura é
só um protagonista de uma história que pertence a todo um povo, a uma nação.”
Quando o Estado reconhece os erros cometidos por seus agentes e adota políticas
de reparação, há uma inversão nas relações. “As pessoas que passavam por loucas
se tornam as portadoras da verdade”,afirma o psicanalista. O instituto que ele
dirige foi um dos cinco selecionados para desenvolver o trabalho, em parceria
com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
Brasileiros – A violência dos agentes do Estado durante a ditadura aconteceu há
décadas, mas os traumas persistem. Por quê?
Moisés Rodrigues da Silva Júnior
– A violência não se faz só contra o
corpo. A violência que se pratica contra o corpo encontra inscrição na
subjetividade,no psiquismo dos violentados. Não só dos violentados, dos
violentadores também, porque a tortura é fundamentalmente uma experiência de
desumanização. Na tortura, o que se busca é desumanizar e tornar o torturado
nulo, nada, ninguém.Essa é a marca difícil de ser superada. A marca de voltar à
vida sendo ninguém, não tendo como contar isso e nem ninguém que queira ouvir.
Brasileiros – Ninguém quer ouvir?
Moisés – Tenho escutado muitíssimo as pessoas dizerem: “Mas para
que mexer nisso tudo? Para que ouvir essas histórias horríveis que a gente
passou, esqueceu e ficou pra trás?”. A grande verdade é que a gente não
esqueceu. Só deixou apagado.E há uma grande diferença entre esquecer e apagar.
O trabalho com a violência é recuperar o acontecimento, tramá-lo com palavras,
e tornar essa experiência socializável, compartilhável.
Brasileiros – Como é essa história de as marcas também ficarem no torturador?
Moisés – Ninguém passa impune. O jogo da tortura é cruel. Na
história do Brasil tem a presença da tortura desde o primeiro momento. O
português veio educado pela Santa Inquisição. No Brasil, torturou-se
índios,infiéis, negros, desviantes, comunistas.Essa é a história do Brasil. Ela
contradita a imagem de democracia racial da qual nos orgulhamos. Somos um país
profundamente segregacionista e violento. O que enfrentamos nesse início do
século 21, e com grande esforço, é levantar os véus dessa nação e começar a
ver, afinal, qual é essa alma brasileira.
Brasileiros – O agente do Estado que torturou não estava só cumprindo ordem.
Ele estava dando vazão a impulsos próprios.
Moisés – Com certeza. Nós estamos aqui dando vazão aos nossos
impulsos,à nossa vontade de entender, de deslindar. A existência humana é a
liberação dos impulsos próprios.É isso o que o torturado não consegue.Ele fica
impedido, bloqueado.Tem uma experiência dentro dele que fica enquistada. A
plasticidade psíquica fica comprometida.
Brasileiros – E qual é o
impacto dissoem uma criança? Em um ser em formação?Não necessariamente a
torturadireta.
Moisés – Ah, a matéria da Brasileiros(Quando meninos são
fichados como terroristas,edição 68) mostrou muito bem os impactos da
ditadura sobre crianças.Todos eles conseguiram contar, um por um, como foi,
onde eles ficaram marcados, no esquecimento, na falta de memória, na falta das
referências,no medo. Por serem muito primitivas,são marcas que primam por uma
indistinção.Elas são profundas, intensas,mas não carregam escrito “isto é uma
marca de quem foi torturado”. A marca de quem foi torturado é o horror, a
dissolução da possibilidade de conter em si a experiência.
Brasileiros – Todos sofrem então?
Moisés – A violência se faz diretamente sobre um protagonista, o
torturado,mas, na verdade, atinge não apenas a ele e as pessoas em volta.Quando
alguém é torturado, todo um povo está sendo atingido. Uma experiência como a
que passamos no Brasil, não só de tortura, mas de conivência com a tortura, foi
terrível.O povo vivia sob um signo de terror.O tempo inteiro os pais avisavam
os filhos para terem cuidado, para não se envolverem com as pessoas, para não
se envolverem com a política.Quando se discute a despolitização atual, tem
muitos aspectos do mundo contemporâneo. Com certeza, na despolitização tem
também a marca que a tortura deixou no País. E tem mais. O brasileiro se
acostumou à conivência com a tortura.
Brasileiros – Como?
Moisés – O Comparato (o jurista Fábio Konder Comparato)
citou em um artigo uma pesquisa em que 42% da população brasileira são a favor
da tortura feita por policiais quando eles têm um suspeito nas mãos. Nesse
índice está estampado como a tortura é uma prática assimilada pela população
como uma forma de se obter a verdade.O custo disso é desumanizar o outro.
Brasileiros – O impacto pode, então,ser coletivo.
Moisés – Estamos falando das grandes feridas dessa nação. Somos uma
nação ferida, traumatizada, que nega, coloca um véu sobre as violências do passado
e simplesmente não quer falar. A grande verdade é essa. As pessoas não querem
falar sobre isso.Uma quantidade imensa de pessoas guardou para si a concepção
de que houve uma guerra civil no Brasil, uma guerra suja. De alguma forma, a
Leide Segurança Nacional colocou que havia um inimigo interno, não alguém que
resistia, que defendia. Os papéis se inverteram completamente. Como
restabelecer a verdade? Fico maravilhado ao ver quase 50 comitês e comissões da
verdade espalhadas pelo País. Se tem gente que quer calar e fazer calar, também
tem gente que quer falar e fazer falar. O Ministério da Justiça assume esse
movimento. As Caravanas da Anistia são impressionantes.
Aberto ao Público - Moisés, com a
equipe do Instituto Projetos Terapêuticos, participa de debate em São Paulo
Moisés – São audiências públicas promovidas pelo Ministério da Justiça,fora de
Brasília, em que se faz a apresentação de processos avaliados pela Comissão da
Anistia. Há pouco tempo, acompanhei uma caravana na USP (Universidade de São
Paulo). A primeira parte foi a retificação do atestado de óbito do Vladimir
Herzog (jornalista morto em 1975).Clarice Herzog, junto com os
filhos,lutou 38 anos para retificar o atestado de óbito do marido. Foi muito
emocionante acompanhar a verdade ser restabelecida. Aquele homem não tinha se
enforcado da forma grotesca que as fotos oficiais mostraram. Ele tinha sido
assassinado, morreu em razão da tortura. Na audiência, a primeira coisa que a
Clarice fez foi pegar o atestado e dizer: “Agora eu quero saber quem foi”. A
luta continua para ela. A verdade não está toda dita. O Brasil ainda não
conseguiu responsabilizar os torturadores.Clarice levantou uma bandeira de
fundamental importância. No Brasil,a transição da ditadura para a democracia
foi feita de uma forma completamente engessada pelos militares.
Brasileiros – Isso significa, na suaopinião, que há justificativa para osentimento de
vingança contra ostorturadores?
Moisés – A questão é de justiça, não é de vingança, nem de
revanche. Vivemos num Estado democrático. Temos lei.O que se quer é só a
aplicação da lei, nada mais que isso. Para mim,seria suficiente se as pessoas
que ocuparam de forma indevida a sua posição fossem levadas a julgamento.
Brasileiros – Muitos criticam as vítimasque expõem suas feridas, como seelas não
quisessem se desapegar dopassado.
Moisés – A vítima é só um protagonista de uma história que pertence
a todo um povo, a uma nação. Existe o elemento pessoal, mas tem uma chaga que é
do País. Nesse sentido, as Clínicas do Testemunho ocupam lugar fundamental por
que o Estado reconhece a responsabilidade por seus agentes que perseguiram,
torturaram e mataram cidadãos. Isso muda completamente a história. Isso muda a
possibilidade clínica. Uma coisa é atender uma pessoa com sofrimento. Outra é
estar numa política de reparação em que o Estado reconhece suas culpas e suas
responsabilidades.Quando o acontecido é confirmado pelo Estado, o plano sobre o
qual se começa a trabalhar é outro. As pessoas que passavam por loucas se
tornam as portadoras da verdade. É uma inversão bastante importante na ordem
das relações.
Brasileiros – Da mesma forma queo indivíduo pode agir movido peloinconsciente, sem se
dar conta, a sociedadecomo um todo pode ser movidapor traumas?
Moisés – Com certeza. O Primo Levi(escritor italiano de origem
judaica,falecido em 1987) tem um relato lindo,no qual conta do sonho
recorrente que tinha no campo de concentração,durante a Segunda Guerra
Mundial.Ele e os companheiros dele sonhavam em um dia voltar para casa e contar
tudo o que eles tinham vivido. Quando foi libertado, ele chegou em casa e
começou a contar as experiências que tinha passado para seus amigos e
familiares. As pessoas foram saindo de fininho da sala. Não queria me não
podiam escutar aquelas histórias horríveis. Aquilo se repetiu algumas vezes até
que Primo Levi percebeu que ele carregava em si o horror, o terror,que era
dele, mas era também de todos aqueles que não podiam escutar aquelas histórias.
Daí a pergunta:Por que é ainda tão difícil falar hoje? Por que as pessoas não
querem ouvir? Isso remete diretamente aos ferimentos do terror que ficaram
encriptados na história do Brasil.
Brasileiros – Qual o seu prognóstico?A tortura continua nas delegacias,nas prisões.
Moisés – Estamos em meio ao processo.Está se dando um passo
bastante importante na medida em que o Estado reconhece a sua
responsabilidade.Esse é o ponto fundamental. O passo que está se dando é em
relação aos afetados pela violência nos anos da ditadura, mas estamos
avançando.E eu me coloco completamente como a Clarice. Agora quero saber mais,e
quero saber mais das violências atuais. Apesar do refluxo dos que acreditam que
a questão da segurança pública se resolveria com o aumento da repressão, com a
diminuição da idade penal, existem grandes porções da sociedade que pensam
diferente.Nesse momento, não estamos tratando disso, mas o trabalho aponta para
essas questões atuais.
Brasileiros – Como
funcionam as Clínicas do Testemunho?
Moisés – São sempre trabalhos grupais.É muito importante que o
relato seja sempre socializado. Grupos têm uma grande potência de mediação
entre indivíduos e instituições. São lugares onde a ressonância dos afetos e a
potência do acolhimento se multiplicam.Torturados que puderam voltar para a
cela e serem recebidos pelos companheiros ficaram muito menos traumatizados do
que aqueles que tiveram que ser hospitalizados ou foram colocados em celas
isolados. O acolhimento do outro, o reconhecimento da dor, são fundamentais
nesse tipo de questão que estamos lidando. A mensagem última que passa nesse
tipo de situação é: será que aquilo aconteceu mesmo? Isso é a imensidão do
acontecimento não podendo ser comportada na pequenez da subjetividade.
Brasileiros – Esses grupos têm característicasespecíficas?
Moisés – Há grupos que já prestaram depoimento à Comissão de
Anistia,que fizeram o seu testemunho. Para eles, a questão é ver como isso
afetou a sua vida. O testemunho entranha em palavras, em frases, aquilo que era
sensação,o excesso de sofrimento. Ele é a possibilidade discursiva de
compartilharem direção ao social, que marca o humano. Mas na construção dessas
frases, muitas coisas não cabem no discurso todo. Para os grupos que estão em
processo de construção do testemunho,a ideia é perguntar o que eles precisam
para completar o trabalho.Não é um trabalho fácil, é a construção por escrito
da história. Há ainda um terceiro grupo, de pessoas que nunca se animaram a
fazer o seu testemunho,mas que têm dúvidas se o processo seria bom. É preciso
arrojo, coragem,para fazer o testemunho.
Brasileiros – Mas é possível fazer o processoda anistia sem fazer o testemunho.
Moisés – Pode, mas o testemunho é parte fundamental do processo de
reparação, de restauração da verdade.No Brasil, a anistia está muito mais
ligada à lembrança do que ao perdão.
Brasileiros – Qual a diferença?
Moisés – Essa é uma articulação semântica fundamental. Nas
caravanas,o Paulo Abrão (o secretário nacional de Justiça, entrevistado
pela Brasileiros,na edição 64) se desculpa em nome do Estado
brasileiro. É um momento de comoção. O Paulo Abrão é um homem que põe para
vibrar toda a humanidade dele quando está falando em nome do Estado. É muito
impressionante porque é como se ele pudesse, na fragilidade humana de um corpo,
representar tudo o que o discurso dele comporta.
Brasileiros – As clínicas também vãoatender os familiares dos anistiados.
Moisés – Os psicanalistas húngaros Nicolas Abraham e Maria Torok
trabalham no livro A Casca e o Núcleo um conceito de cripta,
pensando nos lugares onde ficam inscritos os sofrimentos dissociados. Abraham e
Torok falam de três tempos da situação traumática. O primeiro momento é do
diretamente afetado. A experiência é indizível, na medida em que não tem
palavras. Nessa primeira geração, a experiência é sensação,emoção. São os
excessos. Na segunda geração, a questão é o inominável.Sobram restos de
sofrimento, mas ele não mantém uma relação direta com a experiência traumática.
Então,existe a sensação que não dá para ser nominada ou referida como
experiência traumática. Na terceira geração, a situação é impensável. Na
verdade, já virou fantasma. Faz parte daquela pergunta que você fez, esses
inconscientes que ficam tomados pela história.
Brasileiros – De outras gerações?
Moisés – Esses acontecimentos ficam colocados na ordem do
horror,não tendo mais a referência nem do inominável da segunda geração nem do
indizível da primeira. Então, o trabalho com os filhos e os netos tem essa
delicadeza de passar ou pulsar de alguma forma para retirar essas coisas que
ficaram como resíduos tóxicos na vida das pessoas.Esse é um processo que
conheço e pessoas que passaram geracionalmente por questões de violência
conhecem, mas é diferente fazer isso tendo o Estado como responsável.Isso é
novidade, algo que estamos tentando. Estamos vivendo coisas que não existiam,
que não têm registro.
Brasileiros – Onde vai dar?
Moisés – Não sabemos. Nós temos montado sets, pensado nas pessoas.
No edital do Ministério da Justiça para as Clínicas do Testemunho, tem o
atendimento às pessoas e um segundo eixo que é de investigação, de pesquisa e
criação de insumos, apontando para que se estabeleça uma política pública.O
terceiro eixo é a capacitação de operadores dessas clínicas. Aqui no Instituto
de Projetos Terapêuticos estamos montando umwebdoc (arquivo
abertona internet com possibilidade de interação dos usuários). Chamamos outros
operadores de grupos, sociólogos, historiadores,psicanalistas, para apoiara
pesquisa. Gente que é da universidade,que tem metodologia. Não queremos fazer
só o reconhecimento do avanço. Queremos saber quais avanços são possíveis e
quais não são. A ideia é criar de verdade massa crítica para essa iniciativa.
Brasileiros – E o terceiro eixo, a formaçãode operadores?
Moisés – Para a capacitação, estamos escolhendo profissionais da
rede pública, da área da saúde. Vamos também trabalhar com pessoas que atuam
junto à população carcerária e às Mães de Maio (movimento de mulheres
que perderam seus filhos em maio de 2006, em situação registrada pela
polícia como “resistência seguida de morte”) .
Brasileiros – Seria mais
fácil esquecer?
Moisés – É impossível esquecer.Tem um princípio interessante
dapsicanálise que diz que, para umacoisa ser esquecida, ela primeiroprecisa ser
lembrada, apropriada edepois esquecida. O Fédida (o psicanalistafrancês
Pierre Fédida) dizque o luto é a elaboração que permiteque a gente encontre
um lugarpara os nossos mortos, para queeles não nos assombrem. Não existe
esquecer sem elaborar. Isso é a talcripta, é criar fantasmas que podem aparecer
a qualquer momento e nos aterrorizar.